Saturday, April 14, 2007

HIPOCRIZIL*

Sanguebom saiu do Largo de São Francisco em direção à Primeiro de Março. Estava pensativo! Refletia sobre questões nobres que cheiravam a ouro e prata. Pegou a Ouvidor e seguiu em frente. Antes de chegar na Uruguaiana percebeu uma senhora branca em sua frente, quando ela o viu, escondeu a bolsa em baixo do braço e seguiu assustada para o outro lado da calçada. Ele continuou o caminho como se nada tivesse acontecido. Atravessou a Uruguaiana, antes de chegar no cruzamento que há ali com a Gonçalves Dias, duas moças que seguiam em sua direção tiveram a mesma reação que a velha. Parou de refletir sobre as questões auríferas e ficou constrangido com a atitude das três personagens que haviam invadido seu caminho. A Ouvidor, naquele horário, devia comportar mais de 2000 pessoas, aproximadamente. Já que as coisas estavam se dando daquele jeito, resolveu lá na Rio Branco fazer algo diferente. Parou no sinal fechado para pedestre e observou a movimentação ao seu redor. Dois homens brancos trajando terno acompanhados por uma mulher também branca pararam atrás dele. Num teve conversa, na mesma hora Sanguebom pegou sua mochila que carregava nas costas e a colocou pra frente, olhou para o trio como se estivesse coagido e demonstrou medo. Fez uma cara pavorosa, digna de dó. Chegou para o lado demonstrando um certo incomodo. Receio, também poderia ser identificado. Sanguebom fez da mesma forma que alguns brancos sempre fazem. Os três, na mesma hora, se entre olharam e soltaram uma gargalhada constrangedora que poderia ser traduzida por: “ele pensa mesmo que iremos roubá-lo?” Depois disso, seguiu seu caminho. Essa experiência deve ter servido para alguma coisa. Continuou na Ouvidor e antes da Quitanda outra criatura teve o mesmo comportamento das três bruxas que se esconderam e guardaram as bolsas. Resolveu fazer como o trio. Soltou uma gargalhada que acabou não surtindo o mesmo efeito que os brancos conseguiram impor nele anteriormente. Ficou puto! Mas entre a Rua do Carmo e a Primeiro de Março, outra estranha decidiu ter a mesma atitude. Aí, não teve jeito. Ele parou, olhou pra ela e disse: - “Senhora! Ei, senhora! (fingia que não ouvia) Eu num ia fazer isso, não. Mas, me dá a bolsa por favor. Me dá!” Quando ouviu a oração com duas negativas, caracterizando uma afirmação categórica. Entregou sem titubear. Na mesma esquina, Sanguebom a dispensou numa lata de lixo sem olhar a cor, sem sentir o peso e sem interesse algum de saber o que havia dentro. Se sentiu satisfeito e ao mesmo tempo aliviado. Dali, foi para a biblioteca terminar de ler algum livro sobre democracia racial em “Hipocrizil”.

* Termo cunhado do brilhante autor Edson Robson.
Méier. 14 de abril, 2007
leo bento


5 comments:

  1. Irmão, mais uma vez gostei. A diferença entre este o outro que tanto elogiei está no fato de que o primeiro pode ser apreciado por muita gente, enquanto este tem um universo mais restrito: pessoas como eu e você, que já passamos pela desagradável experiência de Sanguebom tantas vezes. Mas a leitura depende mesmo das vivências de cada um. Por isso, não é literatura menor, mas é literatura para leitores maiores.

    Muito bom nesse conto é a fala do narrador sobre as mulheres terem invadido o caminho do protagonista, e não o oposto, como normalmente se enxerga esse tipo de situação. Essa "inversão" (na verdade, a forma correta de ver a cena), tem experiência semelhante radicalizada em "Solar dos príncipes", conto de Marcelino Freire. Vou te passar.

    Continue depurando tua linguagem, porque somos herdeiros da melhor tradição da palavra. Abraço forte!

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  2. Fala meu irmão! Gostei muto do texto, excelente blogger, abração

    Chehuan

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  3. Será apenas uma doença crônica ou a cristalização das imagens invertidas acalentadas pelas elites dominantes?

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  4. Então Sanguebom resolveu roubar. Se ele tivesse devolvido faria mais jus ao nome.
    Ninguém é perfeito, todo mundo erra.
    Fora isso (prefiro fins felizes) gostei do estilo.

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  5. Gostei muito do texto. Ácido demais, do jeito que gosto.. E o fnal, então, bastante refinado ..E ao contrário do comentário abaixo eu prefiro finais critícos ainda que infelizes. Os sngue bons não são felizes nessa cidade racista!
    Beijos, meu amigo! E eu aposto que vc não adivinha quem escreveu isso ...

    Ms te dou uma dica: meus olhos estão ficando ainda menores.

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