Sunday, March 26, 2006

Recordações não vividas

Ontem eu estava parado e pensativo. É meu jeito. Lembrava de seu sorriso, aquele último lançado em minha direção. Ah, nem sei definir. Tipo expansivo, com qualquer coisa de ‘meiguicidade’. Me causou arrepios vê-lo chegando, chegando mais pra perto e abrindo os braços. De uma hora pra outra, estava envolto pelos braços de seu sorriso. Pronto, estava abraçado! Hum, quando eu percebi já estava em outra morada, habitava a sua boca. Naveguei um rio de salivas sem fim. Fui abrindo caminho nas micro-vilosidades de sua língua. Seus dentes passei a escalar um por um fincando no topo de cada as iniciais de meu nome. Fiz tudo sem respeitar as leis da gravidade. E quando o céu de sua boca se mostrou repleto de estrelas a nos iluminar, algumas nuvens esbranquiçadas já estavam se formando. Trouxeram indícios de recordações ainda não vividas.

Brejinho, 25 de março de 2006
leo bento

Wednesday, March 15, 2006

Super negão, morto e enterrado!

Hoje, o super negão está morto! Morto e enterrado. É, não acredita? Pois bem, o super negão está morto e enterrado por se encontrar sobre a cama babando, roncando e sentir exalar de seus poros um perfume barato do qual ele nem se recorda o nome da dona. O super negão está morto e enterrado por ter se cansado de chegar a casa ao alvorecer. Se cansou de subir o morro e andar uma longa distância desde a condução que o deixa em um lugar qualquer. O super negão está morto e enterrado por não agüentar mais o último gole e a fumaça seca que o penetra perfurando a garganta, o pulmão e tudo mais. Não consegue mais achar cadência nas conversas tolas dos amigos de copo, não sente apetite em discorrer sobre uma mulher qualquer, mesmo que seja sobre aquela que pensou tê-lo feito feliz. O super negão está morto por sempre ouvir piadas tolas se referindo a sua virilidade, sua beleza, seu jeito ímpar de lhe dar com as paixões. Chega! Isso cansa! O super negão está morto e enterrado pelo fato de não poder segurar um copo de cerveja e aparecer logo em seguida um enxame de mulheres a lhe rodear. O super negão está morto e enterrado! Cansou de ser cortejado, cansou de ser querido, cansou de ser. O super negão está morto e enterrado, quer ser apenas um neguinho.


Brejinho, 02 de fevereiro de 2006.
leo bento

PADÊ DE EXU LIBERTADOR

Ó Exu
ao bruxoleio das velas
vejo-te comer a própria mãe
vertendo o sangue negro
que a teu sangue branco enegrece
ao sangue vermelho
aquece nas veias humanas
no corrimento menstrual
à encruzilhada dos
teus três sangues
deposito este ebó
preparado para ti

Tu me ofereces?
não recuso provar do teu mel
cheirando meia-noite de marafo forte
sangue branco espumante das delgadas palmeiras
bebo em teu alguidar de prata
onde ainda frescos bóiam
o sêmen a saliva a seiva
sobre o negro sangue que circula
no âmago do ferro
e explode em ilu azul

Ó Exu-Yangui
príncipe do universo e último a nascer
receba estas aves e os bichos de patas que
trouxe para satisfazer tua voracidade ritual
fume destes charutos
vindos da africana Bahia
esta flauta de Pixinguinha
é para que possas chorar
chorinhos aos nossos ancestrais
espero que estas oferendas agradem
teu coração e alegrem teu paladar
um coração alegre é
um estômago satisfeito e
no contentamento de ambos
está a melhor predisposição para o cumprimento
das leis da retribuição asseguradoras da harmonia cósmica

Invocando estas leis imploro-te Exu
plantares na minha boca
o teu axé verbal
restituindo-me a língua
que era minha e ma roubaram
sopre Exu teu hálito
no fundo da minha garganta
lá onde brota o botão da voz para
que o botão desabroche
se abrindo na flor do
meu falar antigo
por tua força devolvido
monta-me no axé das palavras
prenhas do teu fundamento dinâmico
e cavalgarei o infinito
sobrenatural do orum
percorrerei as distâncias
do nosso aiyê feito de
terra incerta e perigosa

Fecha o meu corpo aos perigos
transporta-me nas asas
da tua mobilidade expansiva
cresça-me à tua linhagem
de ironia preventiva
à minha indomável paixão
amadureça-me à tua desabusada linguagem
escandalizemos os puritanos
desmascaremos os hipócritas
filhos da puta
assim à catarse das impurezas culturais
exorcizaremos a domesticação
do gesto e outras
impostas a nosso povo negro

Teu punho sou
Exu-Pelintra
quando desdenhando a polícia
defendes os indefesos
vítimas dos crimes do
esquadrão da morte
punhal traiçoeiro da mão branca
somos assassinados
porque nos julgam órfãos
desrespeitam nossa humanidade
ignorando que somos os homens negros
as mulheres negras
orgulhosos filhos e filhas do
Senhor do Orum
Olorum
Pai nosso e teu
Exu de quem és o fruto alado
da comunicação e da mensagem

Ó Exu
uno e onipresente
em todos nós
na tua carne retalhada
espalhada por este mundo e o outro
faça chegar ao Pai a
notícia da nossa devoção
o retrato de nossas mãos calosas
vazias da justa retribuição
transbordantes de lágrimas
diga ao Pai que nunca
no trabalho descansamos
esse contínuo fazer de proibido lazer
encheu o cofre dos exploradores
à mais valia do nosso suor
recebemos nossa
menos valia humana
na sociedade deles
nossos estômagos roncam de
fome e revolta nas cozinhas alheias
nas prisões
nos prostíbulos
exiba ao Pai
nossos corações
feridos de angústia
nossas costas chicoteadas
ontem no pelourinho da escravidão
hoje no pelourinho da discriminação

Exu
tu que és o senhor dos caminhos
da libertação do teu povo
sabes daqueles que empunharam
teus ferros em brasa
contra a injustiça e a opressão
Zumbi
Luiza Mahin
Luiz Gama
Cosme Isidoro
João Cândido
sabes que em cada coração de negro
há um quilombo pulsando
em cada barraco
outro palmares crepita
os fogos de Xangô iluminando nossa luta
atual e passada

Ofereço-te Exu
o ebó das minhas palavras
neste padê que te consagra
não eu
porém os meus e teus
irmãos e irmãs em Olorum
nosso Pai
que está no Orum

Laroiê!
Búfalo, 2 de fevereiro de 1981
Abdias do Nascimento